Vim direto do aeroporto para o plenário. Estou ainda um pouco tontoporque 12 horas de viagem não é algo simples nem fácil. Mas preparo(...) um relatório de todas as visitas, de todas as reuniões em todasas cidades. Foram 13 cidades diferentes em seis países, em 35 dias.Então, é evidente que tenho bastante trabalho. Em todos os países, asreuniões foram sempre com o Parlamento, com o Governo, na maioria dasvezes com os Ministérios de Relações Exteriores, com a sociedadecivil, com a Academia, com o pensamento de cada país, o que foi muitoimportante. Descobri, por exemplo (...) que na cidade de Colônia, umabela cidade da Alemanha, há um mestrado e uma das teses que estãosendo produzidas lá é sobre as milícias do Rio de Janeiro. A estudanteque está elaborando essa tese, evidentemente veio conversar e disseque a principal fonte de pesquisa era o relatório produzido pelaComissão Parlamentar de Inquérito que investigou as milícias nestaCasa. De alguma forma, são sinais da globalização, também.Em todos os países, explicitando quais eu visitei — Alemanha, Holanda,Espanha, França, Bélgica e Itália — sempre fui muito bem recebido esempre uma grande surpresa para mim, principalmente dos parlamentos decada um deles, do quanto conseguimos aqui, através de uma ComissãoParlamentar de Inquérito, porque não foi fácil enfrentar o crimeorganizado. Esse também é papel do parlamento.Eu quero somar a esta fala de uma prestação de contas inicial quefaço, pois acabei de chegar e sei que devo, é minha obrigação prestarcontas por escrito. Quero dizer o que fui fazer lá, o que foi feito,trazendo todas as reportagens que saíram sobre a nossa visita a esseslugares. Essa deve ser a prática desta Casa.Se nós saímos, se não estávamos aqui trabalhando, se estávamostrabalhando em outro lugar, em outro espaço, a prestação de contas éobrigatória. Deve ser sempre assim: na volta de qualquer viagem, oparlamentar tem que apresentar um relatório para dizer porque estavaausente. E, se não foi a trabalho, então que não receba o seu saláriodaquele mês. É o mínimo de seriedade que a gente exige. Portanto, comocheguei hoje, garanto que até quinta-feira estarei apresentando esserelatório atualizado, mas trago algumas informações imediatas.Quero dizer (...) que no início, até porque eu comecei a visita pelaAlemanha, encontrava uma grande dificuldade pedagógica - e olha que eutenho 19 anos de sala de aula, de magistério, e ainda dou aula, aindaestou em sala de aula - mas tinha uma dificuldade pedagógica muitogrande de fazer com que algumas pessoas, principalmente na Alemanha,compreendessem o fenômeno da milícia. Quando eu dizia, ..., que nãosão paramilitares, porque o ‘efeito Colômbia’, o modelo da Colômbia émuito conhecido na Europa. Só que a nossa milícia é diferente domodelo colombiano: nós não temos paramilitares, eles formam uma forçaque está dentro da Polícia, dentro das forças públicas, não está fora,mas é uma força paralela que não está fora do Estado, que age dentrodo Estado e se utiliza da carteira, se utiliza da arma paraimplementar e organizar o crime.Diante disso, havia alguma dificuldade de compreensão de como épossível acontecer.Quando eu dizia que setores do poder público organizam crime, dominamterritórios e dominam, por exemplo, atividades econômicas, mas nãofazem tráfico de drogas — esta é outra comparação equivocada que fazemcom experiências, por exemplo, do México ou da Colômbia. Não hátráfico de drogas nas milícias, a atividade econômica é outra e é maislucrativa, diga-se de passagem, do que o tráfico. Eu lhes dizia quedominam o transporte alternativo.Aí (...) fazer o povo da Alemanha, por exemplo, entender o quesignifica transporte alternativo, era uma dificuldade muito profunda.E tive de dizer que existe o transporte alternativo porque otransporte público não funciona, porque o transporte público no Rio deJaneiro está entregue nas mãos dos donos de empresa de ônibus, quefinanciam campanhas e depois não são cobrados devidamente das suasobrigações, por isso não permitem, por exemplo, que nosso metrô tenhaalgum nível de dignidade nos serviços oferecidos à população, porqueas relações políticas que pairam sobre o interesse público impedem quenosso transporte coletivo tenha alguma qualidade.Fazer com que essas pessoas entendessem isso, em alguns lugares, eramuito difícil.Fazer com que isso pudesse gerar a idéia de que era o braço econômicodo crime que se alimentava de um Estado que propositalmente nãooferece seus serviços para a população, era mais difícil ainda. Comolhes explicar, por exemplo, que setores do poder público dominam adistribuição de gás em diversas áreas do Rio de Janeiro, em mais de200 áreas do Rio de Janeiro? Como explicar que desviam sinais de TV acabo? E fazem com que isso dê um montante, como, por exemplo, umamilícia investigada por nós e depois comprovada pela investigação daDraco, já tivesse um faturamento de um milhão e meio de euros. E sefizéssemos isso convertido, por mês, vai dar, aproximadamente, cincomilhões de reais.Tudo conseguido, tudo conquistado através das falhas do Estado,através da lacuna deixada pelo Estado na vida dessas pessoas das áreasperiféricas e pobres no Rio de Janeiro.É um Estado que não é para todos; uma cidade que não é para todos, maspara alguns.Essa era uma dificuldade que precisávamos superar na hora deconversarmos sobre o crime organizado dentro do Estado.(...) Não existe crime organizado fora do Estado no mundo inteiro. Ocrime só é organizado quando feito por dentro do Estado. O crime forado Estado existe, mas é um crime desorganizado, é um crimedesarticulado, é um crime que não tem conexões. É um crime feito apartir de um Estado que se apresenta seja qual for, pela sua lacuna noque diz respeito a uma política de direitos, pela lógica da repressão.Mas, evidentemente, crime organizado só existe diante do Estado edentro das máquinas públicas, operado por agente da máquina pública.Não é possível o crime ser organizado fora do Estado. Mesmo esses que,aparentemente, surgem de áreas onde supostamente não temos o Estado, oque não é bem verdade. Nós temos o Estado presente nas favelas,através do braço de controle da Polícia. Nós não temos o Estadopresente na garantia dos direitos, com escola de qualidade, com saúdepública de qualidade, com transporte, com política de empregos. Issonós não temos garantido, mas temos o Estado presente na lógica docontrole, na lógica de guetificação, na criminalização da pobreza.(...) uma provocação propositiva: eu não considero que falte políticade segurança para o Estado. Essa é a política de segurança. Não existeausência do Estado, existe um determinado modelo de Estado para essapopulação, e há falhas.A Polícia do Rio de Janeiro cumpre ordens. A Polícia do Rio de Janeiroé absolutamente vinculada e articulada aos interesses políticos. Foicriada assim há duzentos anos. A Polícia do Rio de Janeiro foi criadapela Família Real quando chegou ao Rio de Janeiro para proteger arealeza dos escravos, dos pobres e dos negros que circulavam pelocentro do Rio.A Polícia continua, numa perspectiva histórica, com uma função muitosemelhante a de proteger a casa grande dos riscos da senzala. É ummodelo de guetificação e de controle da população pobre. Não é umafalha do Estado. Este é o Estado. Não é uma ausência de política. Estaé a política do controle através, única e exclusivamente, darepressão, onde o controle é mais absoluto e moderno, com ocupaçõespoliciais.Vamos viver um momento importante no Rio de Janeiro, que é a chegadada Copa do Mundo e das Olimpíadas. Não só das Olimpíadas, mas da Copado Mundo também. É uma grande oportunidade para que possamos virar umadeterminada página no Rio de Janeiro, que é a página da hipocrisia.Para repactuar a ideia de cidade. Para rediscutir o papel que asfavelas têm no Rio de Janeiro. Para romper com a ideia de que a favelaé sempre um debate de Polícia, marcado pelas sucessivas tragédias. Oué um helicóptero matando, ou é um helicóptero sendo derrubado. Quemnão lembra daquela ação, em Senador Camará, do helicóptero fuzilandotodo mundo? O Deputado Paulo Ramos, à época lembrava que qualquer diaum helicóptero seria derrubado, e agora foi derrubado.São marcas de tragédias que provocam nossa hipócrita amnésia. Umatragédia apaga a outra, e vamos nos esquecendo de tudo. Chacinas emais chacinas, como tivemos na década de 90 e continuamos a ter agora.O que foi o Complexo do Alemão? É preciso romper. Não existe históriado Rio de Janeiro sem a história de suas favelas. Mais de um terço dapopulação do Rio de Janeiro vive nas favelas. O risco para o Rio deJaneiro não é o dia em que a favela descer. Ai do Rio de Janeiro, aidas olimpíadas do Rio de Janeiro se um dia a favela não descer! Porquese, um dia inteiro, todos os moradores da favela não saírem de casa, oque funcionará no Rio de Janeiro? Qual serviço vai funcionar no Rio deJaneiro? Nada funcionará, porque continua sendo as mãos e os pés destaCidade. Mas, equivocadamente insistimos em fazer um discurso decriminalização da pobreza e tratando sempre as favelas como caso depolícia. Um procedimento que cria um aspecto do medo, que provoca aintolerância, e V. Exa. sabe muito bem o quanto este debate éimportante, o quanto o medo é estratégico para uma determinadaconcepção de Estado, que quer provocar, num determinado setor a quemnão lhe deu direitos, a perspectiva do medo da construção do inimigopúblico.Este é o momento em que o Rio de Janeiro tem a chance de fazer umdebate, aberto para o mundo, de repactuação da sua concepção decidade. Não podemos perder essa perspectiva e achar que a saída paraisso é um grande muro na Linha Amarela e na Linha Vermelha, porquevamos passar por ali e o problema estará bem distante: do outro ladodo muro.Um dos lugares que visitei oficialmente pelo Parlamento foi aAlemanha. Uma das referências da concepção de cidade, em Berlim, hoje,é a ausência do muro. Berlim é uma das cidades mais importantes doSéculo XX. É só pensarmos o quanto o Século XX foi marcado pela 1ªGuerra, pela 2ª Guerra, pela ascensão do nazifascismo, no períodoentre guerras, pelo pós-guerra e o papel predominante de Berlim emtodos esses debates, pela queda do muro no final da década de 80.Berlim é protagonista durante todo o Século XX. Toda a concepção deBerlim, em pouco tempo, será indiscutivelmente a principal cidadeeuropéia. Todo o conceito que Berlim desenvolve hoje, de cidade, estácalcado como referência simbólica mais importante o rompimento demuros.Nos restos do muro de Berlim que sobraram, que virou lugar devisitação, tem uma frase, que fotografei e vou mandar de presente parao Governador, dizendo: “Muitos são os muros que ainda precisam serderrubados”. Está escrito num pedaço, que ficou em pé, do muro deBerlim, é principalmente aos muros que provocam a invisibilidade de umsetor dessa população, que gera o preconceito, que gera aintolerância, que gera a ideia de que o Rio está em guerra e que asolução para esta guerra é eliminarmos o inimigo. Não é disso queestamos precisando, porque não fizemos outra coisa, na história daRepública do Rio de Janeiro, que não eliminarmos inimigos eproduzirmos inimigos. Foi isso que a ditadura fez com os subversivos,comunistas e todos aqueles que foram ditos “inimigos da pátria”.E agora? Os “inimigos da pátria” são os que sobraram de uma sociedadede mercado. E o nosso Estado continua eliminando esses inimigos, eproduzindo inimigos e trabalhando com a lógica do medo. É isso queprecisamos superar. Este Parlamento tem um papel fundamental como teveno enfrentamento das milícias e continua tendo uma posição fundamentalna cobrança desse Governo de uma política de Segurança Pública, quenão seja calcada na intolerância, no preconceito e na violência. OEstado não pode disputar com o crime quem é mais violento, maisbárbaro, mais brutal. O Estado tem outro papel, e que não é o que seráescrito apenas pela Polícia.(...) de todos os países que visitei, a Itália foi o lugar onde maisfacilmente fomos compreendidos, por razões óbvias. Quando começamos afalar do funcionamento das milícias, na metade da frase, qualquer um,da imprensa ao governo italiano, diziam: isso é máfia. Não precisacontinuar falando, isso é máfia, todas as características da máfia.Esta Casa deu início ao enfrentamento de uma máfia, porque chamamos demilícia equivocadamente, foi o nome dado pela imprensa e que não maisvamos tirar. Mas se trata de máfia. O que fizemos foi iniciar umprocesso de enfrentamento, que está longe de ser o final. As milíciasse organizam para retomarem ano que vem, o espaço perdido na batalhaque travamos aqui dentro. Nós temos responsabilidade pelo que jáiniciamos.Hoje, esse é um assunto discutido em boa parte do mundo. E boa partedo mundo tem o olhar sobre o Rio de Janeiro. E esse olhar para o Riode Janeiro não pode ser apenas, (...), o de um bom lugar para os JogosOlímpicos. Aqui tem que ser um bom lugar para se viver. É isso que agente espera.
Marcelo Freixo
segunda-feira, 26 de outubro de 2009
Assinar:
Postagens (Atom)